“Quem alcançou em alguma medida a liberdade da razão, não pode se sentir mais que um andarilho sobre a Terra e não um viajante que se dirige a uma meta final: pois esta não existe. Mas ele observará e terá olhos abertos para tudo quanto realmente sucede no mundo; por isso não pode atrelar o coração com muita firmeza a nada em particular; nele deve existir algo de errante, que tenha alegria na mudança e na passagem. Sem dúvida esse homem conhecerá noites ruins, em que estará cansado e encontrará fechado o portão da cidade que lhe deveria oferecer repouso; além disso, talvez o deserto, como no Oriente, chegue até o portão, animais de rapina uivem ao longe e também perto, um vento forte se levante, bandidos lhe roubem os animais de carga. Sentirá então cair a noite terrível, como um segundo deserto sobre o deserto, e o seu coração se cansará de andar. Quando surgir então para ele o sol matinal, ardente como uma divindade da ira, quando para ele se abrir a cidade, verá talvez, nos rostos que nela vivem, ainda mais deserto, sujeira, ilusão, insegurança do que no outro lado do portão e o dia será quase pior do que a noite. Isso bem pode acontecer ao andarilho; mas depois virão, como recompensa, as venturosas manhãs de outras paragens e outros dias, quando já no alvorecer verá, na neblina dos montes, os bandos de musas passarem dançando ao seu lado, quando mais tarde, no equilíbrio de sua alma matutina, em quieto passeio entre as árvores, das copas e das folhagens lhe cairão somente coisas boas e claras, presentes daqueles espíritos livres que estão em casa na montanha, na floresta, na solidão, e que, como ele, em sua maneira ora feliz ora meditativa, são andarilhos e filósofos. Nascidos dos mistérios da alvorada, eles ponderam como é possível que o dia, entre o décimo e o décimo segundo toque do sino, tenha um semblante assim puro, assim tão luminoso, tão sereno-transfigurado: – eles buscam a filosofia da manhã.”
(Nietzsche, Humano Demasiado Humano #638)
adorável umbigo
sexta-feira
quarta-feira
diálogos: a ex e eu
- meu coração virou o albergue da prudência.
- e o meu, como sempre, uma colônia de férias.
sábado
domingo
to tentando, mesmo.
escrever alguma coisa, desafogar alguma coisa. afogar.
to precisando morrer e não consigo. já levei facada pelas costas, tiro na cara. não morro.
não faço rima. nem quero. parecer. agora não. dá.
estou e não estou, fico e vou andando ligo um cigarro na tomada
sangro, estanco. sangro. NADA vai embora. eu vou.
não sei qual é o lance, morrer, parir, nascer ou escrever uma merda dessas.
preciso dos meus leões no meu quintal. meus.
preciso vomitar essa bola de pêlo que achei que fosse amor. e foi, talvez. é. se fosse. teria sido.
não. agora nunca mais.
escrever alguma coisa, desafogar alguma coisa. afogar.
to precisando morrer e não consigo. já levei facada pelas costas, tiro na cara. não morro.
não faço rima. nem quero. parecer. agora não. dá.
estou e não estou, fico e vou andando ligo um cigarro na tomada
sangro, estanco. sangro. NADA vai embora. eu vou.
não sei qual é o lance, morrer, parir, nascer ou escrever uma merda dessas.
preciso dos meus leões no meu quintal. meus.
preciso vomitar essa bola de pêlo que achei que fosse amor. e foi, talvez. é. se fosse. teria sido.
não. agora nunca mais.
sábado
Mas eu, em cuja alma se refletem
As forças todas do universo,
Em cuja reflexão emotiva e sacudida
Minuto a minuto, emoção a emoção,
Coisas antagônicas e absurdas se sucedem —
Eu o foco inútil de todas as realidades,
Eu o fantasma nascido de todas as sensações,
Eu o abstrato, eu o projetado no écran,
Eu a mulher legítima e triste do Conjunto
Eu sofro ser eu através disto tudo como ter sede sem ser de água.
álvaro de campos
álvaro de campos
domingo
oito horas de conversa e de piada para, no mínimo, oito anos. sem falar que oito é meu número da sorte, quatro também.. e de quatro nem se fala. né?
pra emoldurar e pendurar na parede:
"Vale mais uma hora de sábio que a vida inteira de tola"
"Nunca foi um bom amigo quem por pouco quebrou a amizade"
"A paciência é amarga, mas seu fruto é doce!"
“A paciência é a chave da justiça.”
"A diferença entre cagar e dar o cu é meramente vetorial"
viu, daniel san? go, go away!
pra emoldurar e pendurar na parede:
"Vale mais uma hora de sábio que a vida inteira de tola"
"Nunca foi um bom amigo quem por pouco quebrou a amizade"
"A paciência é amarga, mas seu fruto é doce!"
“A paciência é a chave da justiça.”
"A diferença entre cagar e dar o cu é meramente vetorial"
viu, daniel san? go, go away!
segunda-feira
quinta-feira
terça-feira
o meu mundo, no instante em que se refrata
A voz da espécie e os ouvidos surdos da arte moderna
Reflexão interessantíssima do Camilo Gomes Jr.
1) O mito da tábula rasa: tem suas raízes na doutrina empiricista, como proposta por John Locke (século XVII), com a qual a mente passou a ser considerada um “quadro em branco”, uma tábula rasa, onde em princípio nada há, até que se lhe imprima o conhecimento através da experiência, pela via dos sentidos.
2) O mito do bom selvagem: emerge da filosofia romântica de Jean-Jacques Rousseau (século XVIII), que desenvolveu o princípio de que todo homem nasce bom, sendo o ambiente social que o corrompe.
3) O mito do fantasma na máquina: mito a que se agarram desesperadamente não apenas os pós-modernistas, mas também os de mentalidade religiosa, está associado à doutrina dualista de René Descartes (século XVII), autor do princípio filosófico de que a mente é algo não-material que governa o corpo, por sua vez, a extensão material do ser. É a ideia mais tarde referida como a do “fantasma na máquina”, a de que há um espírito que controla os atos da máquina do corpo humano.
Disse que falaria de mitos neste texto. E, de fato, comecei-o aludindo a um conhecido conto indígena brasileiro, a lenda da Vitória-Régia, cujo excerto citado não foi escolhido despropositadamente. Sua escolha partiu da leitura de dois trabalhos recentes, a saber, o livro The Beauty Myth [“O Mito da Beleza”], de Naomi Wolf (originalmente publicado em 1991, mas cuja edição aqui referenciada é a de 2002), e o artigo que constitui a réplica de Jonathan Gottschall (e de 30 estudantes de pós-graduação que assinam como coautores) aos argumentos da autora (vide GOTTSCHALL et al., 2008).
Resumindo o que Wolf diz: os “mitos” ocidentais acerca dos traços de beleza femininos não têm nenhuma relação com nossa biologia e não são mais que meros constructos socioculturais que serve aos interesses de sociedades erguidas sobre valores patriarcais. Tentativas de explicar os princípios do julgamento da beleza feminina com base em nossa constituição biológica seriam uma conspiração naturalista visando a solidificar um sistema de crenças que perpetuariam e legitimariam a dominação dos machos sobre as mulheres.
Abster-me-ei de tecer considerações sobre os vários equívocos nessa perspectiva de Wolf no âmbito da teorização sociológica. Aqui, meu foco será em sua crença, pregada na supracitada obra, de que a grande ênfase sobre a beleza feminina que se verifica em nossas sociedades, inclusive em nossas artes (como na literatura, na escultura ou no cinema, por exemplo) não é senão um constructo social das sociedades ocidentais. Logo, conclui peremptoriamente, outras culturas distintas decerto apresentam uma ênfase maior na beleza masculina ou mesmo um equilíbrio na descrição dos aspectos fisicamente atrativos em homens e mulheres.
Visto que há uma considerável variabilidade nas diferenças de fertilidade nas fêmeas humanas, especialmente no tocante ao quesito idade, concluem os psicólogos evolucionistas que uma ênfase maior nos traços joviais da beleza feminina, bem como naqueles sutil ou explicitamente voluptuosos, deveriam não apenas se encontrar em outras culturas que não exclusivamente as ocidentais, como deveriam ser um universal ou quase universal humano.
Foi com esse intento que Gottschall e sua equipe resolveram analisar 90 coleções de antigos contos folclóricos de várias sociedades tribais ou pré-industriais, que dificilmente poderiam ser acusadas de terem sido produzidas sob influência dos valores ocidentais. Foram analisadas histórias de povos dos cinco continentes, bem como de diversas ilhas do pacífico. Os agrupamentos das coleções foram feitos com base em suas salientes afinidades geográfica, linguística e cultural. No fim, apesar da enorme distinção que alguns povos apresentavam nessas três categorias, o número de referências, em suas histórias, descrevendo a beleza feminina com adjetivos comumente usados na tradição ocidental (como, por exemplo, os positivos “linda”, “voluptuosa” e “estonteante”, bem como os usados em descrições depreciativas da beleza física, como “feia”, “monstruosa” ou “repulsiva”) foi inegavelmente maior que as descrições da beleza masculina em praticamente todas as culturas. De fato, a análise dessas fontes, que, aliás, são encontradas em todas as comunidades humanas conhecidas, sugerem que a probabilidade de um personagem ser descrito com adjetivos referentes à beleza física é seis vezes maior quando se trata de uma mulher.
É óbvio que este texto não faz mais que discorrer um tanto superficialmente sobre um tema tão amplo, fascinante e controverso quanto a discussão dos mecanismos inatos que permitiram à nossa espécie não apenas produzir e apreciar as mais variadas formas de arte, como também fazem ouvir-se em cada obra concebida a voz da mimese, da representação do real como captada pelos sentidos evoluídos no Homo sapiens.
Ignorar, ou mesmo negar veementemente, que o Homo artisticus de hoje tem seus pés fincados no ambiente primitivo em que evoluíram nossos ancestrais é agarrar-se a uma crença tão ingênua quanto acreditar a Terra é plana ou que é o Sol que gira ao seu redor. Compreender os mecanismos psíquicos que subjazem à universalidade da ênfase maior na beleza feminina ou na preferência por representações realistas nas artes ou por padrões harmônicos na música não é compactuar com um complô universal visando à dominação de todos segundo os valores de uma cultura patriarcal ou elitista.
Aliás, é exatamente a impostura intelectual que sustenta o pós-modernismo, exigindo iniciação em sua verborrágica e inane literatura teórica para que se possa ser capaz de apreciar sua versão das artes — aqui, sim, num trabalho de condicionamento do que se deva procurar e valorar numa obra —, que se pode notar um projeto elitista de imposição do que seja “arte de verdade” contra os princípios naturais do gosto.
Os velhos pajés das tribos da Amazônia contavam que a Lua, todas as vezes que desaparecia por detrás das serras, escolhia uma índia, transformando-as em estrela, que passava a brilhar no céu. Naiá, moça indígena, filha de valente cacique, nascera branca como o leite, tendo bela cabeleira mais ruiva que as espigas de milho. Naiá desejava ardentemente ser escolhida por Jaci, a Lua, para ser transformada numa estrela cintilante. Mas a lua não ouvia seus pedidos… (LISBOA, 2002, p. 65.)
Neste texto, falarei de mitos. Não apenas de mitos folclóricos, como o do excerto acima, mas também alguns mitos modernos que contaminaram a teorização sobre o valor das artes, bem como a visão objetiva de muitos filósofos e cientistas contemporâneos acerca da realidade das coisas no mundo em que vivemos. No entanto, antes de adentrar esse assunto, gostaria de fazer uma relevante divagação. Permitam-me retroceder uns anos em minha vida, até meados da década de 1990, mais ou menos. Foi por volta dessa época que ouvi de meu patrão, em meu primeiro emprego com carteira assinada — cargo: ajudante geral numa pequena empresa de manutenção de máquinas e sistemas hidráulicos de usinas metalúrgicas —, um aforismo que, há muito, já entrou para a categoria daquilo que chamamos de clichê: “O homem é produto de seu meio!”
Ainda que seja lugar-comum, a frase não deixa de ser interessante. Afinal, poucos apotegmas permitem que, a partir das mesmíssimas palavras, as mais diversas correntes filosófico-ideológicas possam construir seus argumentos — não raro, divergentes. De fato, marxistas podem adequá-la a seu discurso, tal como o podem feministas radicais, desconstrucionistas pós-modernos e, até mesmo, os que, como eu, enxergam o Homo sapiens como produto da evolução darwinista, em face das adversidades dos ambientes onde nossos ancestrais foram submetidos à lâmina afiada da seleção natural e onde a palavra-chave era a adaptação físico-biológica, comportamental e cognitiva que garantisse sobrevivência e sucesso reprodutivo.
Em tempos bem mais recentes, o comprometimento intelectual de filósofos e cientistas (sobretudo os do campo das ciências humanas e sociais), bem como de escritores e artistas em geral, a três pilares dogmáticos de sustentação de suas perspectivas — dos quais falarei alguns parágrafos abaixo — resultou num embate entre a liga marxista-feminista-desconstrucionista-pós-modernista, de um lado, e os naturalistas de visão evolucionista, do outro. E a batalha, em especial do lado de lá da trincheira, dá-se prolixa e passionalmente no campo teórico, onde discursos rebuscados e, não raro, ininteligíveis apenas denunciam uma conspícua impostura intelectual, com muita logorréia disparatada e poucos dados factuais em seu conteúdo, como ficou demonstrado pelo notório trote pregado por Alan Sokal na revista Social Text, em maio de 1996.
Na prática, por sua vez, aqui me focando em particular no âmbito das artes, a aplicação dessa dogmática visão teórica pós-modernista resultou num embaraçoso equívoco elevado ao status de traço de valor. “Naquele engano da alma, ledo e cego”, tomando as palavras de empréstimo a Camões, pariu-se o surto da arte pós-moderna, com suas inúmeras telas que a maioria das pessoas continua a se sentir impelida a relacionar, debochadamente, com pinturas de crianças do maternal; filmes com enredo e imagens impactantes, sem nexo algum, e embebidos em absurdos, em especial na falta de verossimilhança, onde a metalinguagem excede a um recurso criativo interessante, contaminando toda a diegese, para, enfim, consumi-la por completo; peças em que os atores nada mais fazem do que correr nus pelo palco, derramando sangue e leite de cabra pelo corpo, enquanto repetem algo que lembre um mantra qualquer; romances em que a prosa se converte em fluxos de consciência alucinados, estendidos por páginas e páginas, e em que o fazer-sentido parece não mais fazer sentido algum na literatura; músicas com notas ou acordes irritantemente desarmônicos, atonais ou dissonantes, em que melodia se tornou um palavrão execrável.
Ainda que seja lugar-comum, a frase não deixa de ser interessante. Afinal, poucos apotegmas permitem que, a partir das mesmíssimas palavras, as mais diversas correntes filosófico-ideológicas possam construir seus argumentos — não raro, divergentes. De fato, marxistas podem adequá-la a seu discurso, tal como o podem feministas radicais, desconstrucionistas pós-modernos e, até mesmo, os que, como eu, enxergam o Homo sapiens como produto da evolução darwinista, em face das adversidades dos ambientes onde nossos ancestrais foram submetidos à lâmina afiada da seleção natural e onde a palavra-chave era a adaptação físico-biológica, comportamental e cognitiva que garantisse sobrevivência e sucesso reprodutivo.
Em tempos bem mais recentes, o comprometimento intelectual de filósofos e cientistas (sobretudo os do campo das ciências humanas e sociais), bem como de escritores e artistas em geral, a três pilares dogmáticos de sustentação de suas perspectivas — dos quais falarei alguns parágrafos abaixo — resultou num embate entre a liga marxista-feminista-desconstrucionista-pós-modernista, de um lado, e os naturalistas de visão evolucionista, do outro. E a batalha, em especial do lado de lá da trincheira, dá-se prolixa e passionalmente no campo teórico, onde discursos rebuscados e, não raro, ininteligíveis apenas denunciam uma conspícua impostura intelectual, com muita logorréia disparatada e poucos dados factuais em seu conteúdo, como ficou demonstrado pelo notório trote pregado por Alan Sokal na revista Social Text, em maio de 1996.
Na prática, por sua vez, aqui me focando em particular no âmbito das artes, a aplicação dessa dogmática visão teórica pós-modernista resultou num embaraçoso equívoco elevado ao status de traço de valor. “Naquele engano da alma, ledo e cego”, tomando as palavras de empréstimo a Camões, pariu-se o surto da arte pós-moderna, com suas inúmeras telas que a maioria das pessoas continua a se sentir impelida a relacionar, debochadamente, com pinturas de crianças do maternal; filmes com enredo e imagens impactantes, sem nexo algum, e embebidos em absurdos, em especial na falta de verossimilhança, onde a metalinguagem excede a um recurso criativo interessante, contaminando toda a diegese, para, enfim, consumi-la por completo; peças em que os atores nada mais fazem do que correr nus pelo palco, derramando sangue e leite de cabra pelo corpo, enquanto repetem algo que lembre um mantra qualquer; romances em que a prosa se converte em fluxos de consciência alucinados, estendidos por páginas e páginas, e em que o fazer-sentido parece não mais fazer sentido algum na literatura; músicas com notas ou acordes irritantemente desarmônicos, atonais ou dissonantes, em que melodia se tornou um palavrão execrável.
A arte pós-moderna valeu-se de premissas equivocadas sobre os princípios universais do gosto e o funcionamento da mente humana.
Diante do disparate que parece não ter fim, a invencível relutância da maioria das pessoas, em todo o planeta, em sentir-se arrebatadas ao contemplar mais uma exibição de quadros que parecem pintados pelo chimpanzé da (não muito edificante) novela da Globo, não faltam aqueles que, como o diretor e crítico de teatro Robert Brustein, vêm anunciado “o fim das artes” ou “o declínio da civilização cultural” (vide BRUSTEIN, 1997). Todavia, como bem lembrou Steven Pinker, em Tábula Rasa (PINKER, 2004), como se fizesse eco aos comentários do crítico de cinema e literatura João Batista de Brito, no ensaio “Dois Modelos de Cinema” — em que discute sobre como o modelo clássico de cinema hollywoodiano, em contraposição ao modelo artístico europeu, foi o que, de fato, fez sucesso entre o público (vide BRITO, 1995, pp. 196-199) —, há um sem número de exemplos de como as artes estão numa fase extraordinária, contando com o maior número de orquestras sinfônicas, livrarias, bibliotecas e novos filmes independentes que o mundo já teve, recordes de público em concertos clássicos, vendas de livros (incluindo os de arte, poesia e drama) em quantidades sem precedentes, aumento vertiginoso nas matrículas em cursos de desenho, fotografia de arte etc., bem como na aquisição de objetos de arte e redação criativa. Pinker, aliás, destaca que, nunca antes, houve acesso tão fácil às obras literárias, musicais e cinematográficas, que podem ser apreciadas diante da tela de um simples computador conectado à internet.
Outrossim, não por acaso uma matéria na revista Veja (vide MARTINS, 2009), ao elogiar o trabalho do músico erudito John Adams, justificou seu sucesso com alguns enunciados interessantes para o tema deste texto, quais sejam: “John Adams transformou a história americana recente em tema de composições inovadoras, mas que mantêm sintonia com o público”, ou “Adams já compôs inspirado pelo romantismo do alemão Richard Wagner e até pelo atonalismo do austríaco Arnold Schoenberg, por quem hoje não professa simpatia” (grifos meus). O que chama a atenção nesses comentários sobre o trabalho do compositor é o fato de que, como também destaca a matéria de Sérgio Martins, ainda que algumas de suas “passagens soem áridas ao ouvinte não adepto da produção contemporânea, City Noir [sinfonia com que Adams faz uma homenagem ao clima sombrio dos clássicos filmes noir dos anos 1940 e 1950] é altamente palatável”.
A propósito, vêm deste, que é o novo compositor oficial da Filarmônica de Los Angeles, duas relevantes citações — nas quais, todos os grifos são novamente meus. Sobre inovar sem espantar o público, afirmou: “Ingressos de concertos custam caro. Ninguém paga para ouvir algo que vai deixá-lo incomodado”. Sobre sua admiração (não muito pós-modernista) por Mozart, fez questão de justificar: “Sua música também tinha dissonância. Mas cada passagem complicada era seguida por uma melodia agradável. Em compensação, quinze minutos da música de Schoenberg me deixam completamente fatigado”. Claro que, aqui, posso ser menos politicamente correto e esclarecer que o que Adams quer dizer com o eufemismo “fatigado” é que quinze minutos de exposição à música atonal de Schoenberg deixa até mesmo ele de saco cheio!
Por fim, como iniciei este texto dizendo que falaria de mitos, é hora de passarmos à contemplação de quais são os três que se imiscuíram nas filosofias e ideologias surgidas sob a influência do movimento modernista e, mais radicalmente ainda, na chamada arte pós-moderna. Estou-me referindo aos mitos elencados por Pinker (2004), em sua obra, enquanto os analisa de forma cativante e, o mais importante, confrontando-os com sólidos dados obtidos recentemente nos mais variados ramos das ciências que estudam a percepção e a cognição humanas. São estes: os mitos da tábula rasa, do bom selvagem e do fantasma na máquina.
Diante do disparate que parece não ter fim, a invencível relutância da maioria das pessoas, em todo o planeta, em sentir-se arrebatadas ao contemplar mais uma exibição de quadros que parecem pintados pelo chimpanzé da (não muito edificante) novela da Globo, não faltam aqueles que, como o diretor e crítico de teatro Robert Brustein, vêm anunciado “o fim das artes” ou “o declínio da civilização cultural” (vide BRUSTEIN, 1997). Todavia, como bem lembrou Steven Pinker, em Tábula Rasa (PINKER, 2004), como se fizesse eco aos comentários do crítico de cinema e literatura João Batista de Brito, no ensaio “Dois Modelos de Cinema” — em que discute sobre como o modelo clássico de cinema hollywoodiano, em contraposição ao modelo artístico europeu, foi o que, de fato, fez sucesso entre o público (vide BRITO, 1995, pp. 196-199) —, há um sem número de exemplos de como as artes estão numa fase extraordinária, contando com o maior número de orquestras sinfônicas, livrarias, bibliotecas e novos filmes independentes que o mundo já teve, recordes de público em concertos clássicos, vendas de livros (incluindo os de arte, poesia e drama) em quantidades sem precedentes, aumento vertiginoso nas matrículas em cursos de desenho, fotografia de arte etc., bem como na aquisição de objetos de arte e redação criativa. Pinker, aliás, destaca que, nunca antes, houve acesso tão fácil às obras literárias, musicais e cinematográficas, que podem ser apreciadas diante da tela de um simples computador conectado à internet.
Outrossim, não por acaso uma matéria na revista Veja (vide MARTINS, 2009), ao elogiar o trabalho do músico erudito John Adams, justificou seu sucesso com alguns enunciados interessantes para o tema deste texto, quais sejam: “John Adams transformou a história americana recente em tema de composições inovadoras, mas que mantêm sintonia com o público”, ou “Adams já compôs inspirado pelo romantismo do alemão Richard Wagner e até pelo atonalismo do austríaco Arnold Schoenberg, por quem hoje não professa simpatia” (grifos meus). O que chama a atenção nesses comentários sobre o trabalho do compositor é o fato de que, como também destaca a matéria de Sérgio Martins, ainda que algumas de suas “passagens soem áridas ao ouvinte não adepto da produção contemporânea, City Noir [sinfonia com que Adams faz uma homenagem ao clima sombrio dos clássicos filmes noir dos anos 1940 e 1950] é altamente palatável”.
A propósito, vêm deste, que é o novo compositor oficial da Filarmônica de Los Angeles, duas relevantes citações — nas quais, todos os grifos são novamente meus. Sobre inovar sem espantar o público, afirmou: “Ingressos de concertos custam caro. Ninguém paga para ouvir algo que vai deixá-lo incomodado”. Sobre sua admiração (não muito pós-modernista) por Mozart, fez questão de justificar: “Sua música também tinha dissonância. Mas cada passagem complicada era seguida por uma melodia agradável. Em compensação, quinze minutos da música de Schoenberg me deixam completamente fatigado”. Claro que, aqui, posso ser menos politicamente correto e esclarecer que o que Adams quer dizer com o eufemismo “fatigado” é que quinze minutos de exposição à música atonal de Schoenberg deixa até mesmo ele de saco cheio!
Por fim, como iniciei este texto dizendo que falaria de mitos, é hora de passarmos à contemplação de quais são os três que se imiscuíram nas filosofias e ideologias surgidas sob a influência do movimento modernista e, mais radicalmente ainda, na chamada arte pós-moderna. Estou-me referindo aos mitos elencados por Pinker (2004), em sua obra, enquanto os analisa de forma cativante e, o mais importante, confrontando-os com sólidos dados obtidos recentemente nos mais variados ramos das ciências que estudam a percepção e a cognição humanas. São estes: os mitos da tábula rasa, do bom selvagem e do fantasma na máquina.
A santíssima trindade das artes modernas
1) O mito da tábula rasa: tem suas raízes na doutrina empiricista, como proposta por John Locke (século XVII), com a qual a mente passou a ser considerada um “quadro em branco”, uma tábula rasa, onde em princípio nada há, até que se lhe imprima o conhecimento através da experiência, pela via dos sentidos.
2) O mito do bom selvagem: emerge da filosofia romântica de Jean-Jacques Rousseau (século XVIII), que desenvolveu o princípio de que todo homem nasce bom, sendo o ambiente social que o corrompe.
3) O mito do fantasma na máquina: mito a que se agarram desesperadamente não apenas os pós-modernistas, mas também os de mentalidade religiosa, está associado à doutrina dualista de René Descartes (século XVII), autor do princípio filosófico de que a mente é algo não-material que governa o corpo, por sua vez, a extensão material do ser. É a ideia mais tarde referida como a do “fantasma na máquina”, a de que há um espírito que controla os atos da máquina do corpo humano.
Juntos, estes três pilares têm sustentado a visão da maioria dos intelectuais, filósofos e cientistas sociais, até os dias de hoje. São cultuados como verdades intocáveis e infalíveis sobre o ser humano, e qualquer questionamento proposto contra sua factualidade é recebido com assombro e indignação que beiram a uma reação de fanatismo. Porém, para se ter uma boa ideia do problema no culto a esses três mitos, é preciso perceber o que querem dizer: a natureza humana é boa; no entanto, as pessoas nascem com uma mente em branco, onde o conhecimento da realidade e os valores entram pelas portas dos sentidos, através do “condicionamento” (uma visão relativa do processo de aprendizagem), imprimindo-se nessa tábula rasa, moldando, destarte, a personalidade e o caráter de cada um, enquanto “cria” sua percepção do mundo, que não necessariamente constitui a percepção do real, mas apenas daquilo que “fomos condicionados” a aceitar como real; por fim, há uma instância espiritual ou não material da mente de cada indivíduo, que lhe dá livre-arbítrio, conferindo plena autonomia a seu comportamento e atitudes, além de representar, na visão de alguns mais esotéricos, uma dimensão infinita do ser, que permite estabelecer comunicação com a “verdadeira essência do cosmo”.
mbora o culto a essa trindade mítica redunde em problemas em várias esferas, meu foco aqui será no que diz respeito às artes e à sua apreciação. Neste sentido, cumpre destacar que, com o avanço em vários ramos da ciência dedicados ao estudo do cérebro humano sob focos distintos, o que se descobriu e continua-se descobrindo contradiz cada um dos três mitos aludidos acima. Com efeito, da visão de humanos nascendo com uma mente em branco, que foi um prato cheio para os behavioristas do século passado, chegou-se à atual compreensão de que o produto do funcionamento de nossos circuitos neurais, o que denominamos mente, em termos metafóricos, mais se assemelha a um daqueles canivetes do MacGyver, protagonista do antigo seriado de TV exibido no Brasil com o título de Profissão: Perigo.
Como já não é nenhuma novidade para neurocientistas, psicólogos evolucionistas e cientistas cognitivos, a mente humana “é um conjunto de ferramentas e capacidades especificamente adaptadas a tarefas e interesses importantes” (DUTTON, 2003, p. 696). Nossas faculdades mentais, as inclinações que exibimos naturalmente e os desejos que manifestamos são os resultados observáveis de adaptações desenvolvidas desde o Pleistoceno, atingindo o estágio evolutivo mantido até hoje, cerca de 10 mil anos atrás, por volta da época holocena. Ainda que as sociedades hodiernas sejam o mais distintas possível do ambiente onde nossos cérebros foram geneticamente desenhados, o fato é que nos ajustamos à vida moderna como a construímos, em termos socioculturais, valendo-nos das mesmas faculdades mentais que desenvolvemos para lidar com as adversidades enfrentadas por um primitivo bando de caçadores-coletores de que descendemos.
E o que isso tem a ver com nossa apreciação artística? Muita coisa!
Para citar um exemplo, sigamos por uma linha lógica de raciocínio: as raízes do prazer nos organismos estão plantadas no ambiente ancestral onde evoluímos; logo, tudo aquilo que favoreceu a aptidão de nossos ancestrais acabou associado às nossas sensações de prazer, como processadas em nossa circuitaria cerebral — sensações estas provocadas por mecanismos específicos que se desenvolveram a fim de direcionar nossas preferências. Eis o porquê de encontrarmos prazer em alimentos que comemos, no sexo que fazemos, na presença de nossos filhos ao nosso redor, na excitação diante da possibilidade de aprender a fazer isso ou aquilo. Além disso, no passado, os homens primitivos exploravam o ambiente natural à sua volta e, enquanto o faziam, buscavam em seu campo visual por padrões que auxiliassem no deslocamento através da paisagem avistada, bem como na obtenção de qualquer elemento proveitoso que esta oferecesse. Como Pinker destaca:
mbora o culto a essa trindade mítica redunde em problemas em várias esferas, meu foco aqui será no que diz respeito às artes e à sua apreciação. Neste sentido, cumpre destacar que, com o avanço em vários ramos da ciência dedicados ao estudo do cérebro humano sob focos distintos, o que se descobriu e continua-se descobrindo contradiz cada um dos três mitos aludidos acima. Com efeito, da visão de humanos nascendo com uma mente em branco, que foi um prato cheio para os behavioristas do século passado, chegou-se à atual compreensão de que o produto do funcionamento de nossos circuitos neurais, o que denominamos mente, em termos metafóricos, mais se assemelha a um daqueles canivetes do MacGyver, protagonista do antigo seriado de TV exibido no Brasil com o título de Profissão: Perigo.
Como já não é nenhuma novidade para neurocientistas, psicólogos evolucionistas e cientistas cognitivos, a mente humana “é um conjunto de ferramentas e capacidades especificamente adaptadas a tarefas e interesses importantes” (DUTTON, 2003, p. 696). Nossas faculdades mentais, as inclinações que exibimos naturalmente e os desejos que manifestamos são os resultados observáveis de adaptações desenvolvidas desde o Pleistoceno, atingindo o estágio evolutivo mantido até hoje, cerca de 10 mil anos atrás, por volta da época holocena. Ainda que as sociedades hodiernas sejam o mais distintas possível do ambiente onde nossos cérebros foram geneticamente desenhados, o fato é que nos ajustamos à vida moderna como a construímos, em termos socioculturais, valendo-nos das mesmas faculdades mentais que desenvolvemos para lidar com as adversidades enfrentadas por um primitivo bando de caçadores-coletores de que descendemos.
E o que isso tem a ver com nossa apreciação artística? Muita coisa!
Para citar um exemplo, sigamos por uma linha lógica de raciocínio: as raízes do prazer nos organismos estão plantadas no ambiente ancestral onde evoluímos; logo, tudo aquilo que favoreceu a aptidão de nossos ancestrais acabou associado às nossas sensações de prazer, como processadas em nossa circuitaria cerebral — sensações estas provocadas por mecanismos específicos que se desenvolveram a fim de direcionar nossas preferências. Eis o porquê de encontrarmos prazer em alimentos que comemos, no sexo que fazemos, na presença de nossos filhos ao nosso redor, na excitação diante da possibilidade de aprender a fazer isso ou aquilo. Além disso, no passado, os homens primitivos exploravam o ambiente natural à sua volta e, enquanto o faziam, buscavam em seu campo visual por padrões que auxiliassem no deslocamento através da paisagem avistada, bem como na obtenção de qualquer elemento proveitoso que esta oferecesse. Como Pinker destaca:
"Entre esses padrões incluem-se regiões bem delineadas, características improváveis, mas informativas, como linhas paralelas e perpendiculares e eixos de simetria e alongamento. Todos são usados pelo cérebro para esculpir o campo visual em superfícies, agrupar as superfícies em objetos e organizar os objetos de modo que as pessoas possam reconhecê-los na próxima vez que o virem (PINKER, op. cit., pág. 548).
Destarte, não surpreende, de forma alguma, o resultado de uma pesquisa realizada em dez países da Ásia, África, Europa e das três Américas, em que as pessoas entrevistadas, no que se lhes pediu que descrevessem os elementos que lhes proporcionavam prazer na admiração de uma pintura, expressaram uma “coincidente” preferência por cenários realistas, em que houvesse certos elementos, como água, árvores e outras plantas, animais domésticos ou selvagens, bem como figuras humanas (preferencialmente, mulheres, crianças e também figuras históricas). Por outro lado, citaram, novamente de forma quase unânime, o tipo de pinturas que menos lhe atraíam: não por acaso o tipo de arte abstrata, com seus borrões coloridos, suas formas geométricas recortadas e preenchidas em cores berrantes e desarmônicas etc.
Então, valendo-se dos dados estatísticos obtidos com a pesquisa, os dois artistas plásticos que a encomendaram, a saber, Vitaly Komar e Alexander Melamid, resolveram pintar várias telas, duas para cada país — uma representando o que eles mais gostam; outra, o que mais desprezam (vide WYPIJEWSKI, 1997). De forma humorística, misturaram nas pinturas elementos em nada compatíveis — como se vê, por exemplo, na pintura intitulada America’s Most Wanted [“O que a América mais quer”, numa tradução livre], em que George Washington caminha ao lado de um lago, tendo uma família em trajes modernos um pouco adiante, enquanto dois veados caminham na água. E a tela não deixou de exercer seu encanto; afinal, não é a verossimilhança contextual dos elementos que parece importar, mas o realismo de cada forma retratada.
Informação um tanto interessante: embora as pinturas sejam baseadas em dados sobre preferências gerais de povos de diferentes culturas, refletem um conjunto de elementos intrigantemente semelhantes. Portanto, só nos resta o riso em face do ridículo e o lamento pela ignorância, quando os cultuadores da trindade mítica comentada mais acima surgem, como crentes pregando em praças públicas, afirmando que somos enganados por nossos sentidos, experimentando uma percepção ilusória da realidade, que precisamos “desconstruir” as convenções que temos sobre tudo o que chamamos real etc., não obstante seu arrogante sentimento se superioridade intelectual ao alertarem o mundo contra a conspiração sociocultural que nos estaria fazendo acreditar na realidade de coisas ilusórias como — quem sabe? — a existência da gravidade.
Nossas mentes evoluíram de modo a nos garantir vantagens na luta pela sobrevivência e na transmissão de nosso genes a gerações posteriores. É um dispautério concluir que nossos sentidos se desenvolveram na contramão de tudo mais em nós, levando-nos a uma percepção do mundo que não correspondesse o melhor possível com seus aspectos reais.
Então, valendo-se dos dados estatísticos obtidos com a pesquisa, os dois artistas plásticos que a encomendaram, a saber, Vitaly Komar e Alexander Melamid, resolveram pintar várias telas, duas para cada país — uma representando o que eles mais gostam; outra, o que mais desprezam (vide WYPIJEWSKI, 1997). De forma humorística, misturaram nas pinturas elementos em nada compatíveis — como se vê, por exemplo, na pintura intitulada America’s Most Wanted [“O que a América mais quer”, numa tradução livre], em que George Washington caminha ao lado de um lago, tendo uma família em trajes modernos um pouco adiante, enquanto dois veados caminham na água. E a tela não deixou de exercer seu encanto; afinal, não é a verossimilhança contextual dos elementos que parece importar, mas o realismo de cada forma retratada.
Informação um tanto interessante: embora as pinturas sejam baseadas em dados sobre preferências gerais de povos de diferentes culturas, refletem um conjunto de elementos intrigantemente semelhantes. Portanto, só nos resta o riso em face do ridículo e o lamento pela ignorância, quando os cultuadores da trindade mítica comentada mais acima surgem, como crentes pregando em praças públicas, afirmando que somos enganados por nossos sentidos, experimentando uma percepção ilusória da realidade, que precisamos “desconstruir” as convenções que temos sobre tudo o que chamamos real etc., não obstante seu arrogante sentimento se superioridade intelectual ao alertarem o mundo contra a conspiração sociocultural que nos estaria fazendo acreditar na realidade de coisas ilusórias como — quem sabe? — a existência da gravidade.
Nossas mentes evoluíram de modo a nos garantir vantagens na luta pela sobrevivência e na transmissão de nosso genes a gerações posteriores. É um dispautério concluir que nossos sentidos se desenvolveram na contramão de tudo mais em nós, levando-nos a uma percepção do mundo que não correspondesse o melhor possível com seus aspectos reais.
Considerações sobre o “mito da beleza”
Disse que falaria de mitos neste texto. E, de fato, comecei-o aludindo a um conhecido conto indígena brasileiro, a lenda da Vitória-Régia, cujo excerto citado não foi escolhido despropositadamente. Sua escolha partiu da leitura de dois trabalhos recentes, a saber, o livro The Beauty Myth [“O Mito da Beleza”], de Naomi Wolf (originalmente publicado em 1991, mas cuja edição aqui referenciada é a de 2002), e o artigo que constitui a réplica de Jonathan Gottschall (e de 30 estudantes de pós-graduação que assinam como coautores) aos argumentos da autora (vide GOTTSCHALL et al., 2008).
Resumindo o que Wolf diz: os “mitos” ocidentais acerca dos traços de beleza femininos não têm nenhuma relação com nossa biologia e não são mais que meros constructos socioculturais que serve aos interesses de sociedades erguidas sobre valores patriarcais. Tentativas de explicar os princípios do julgamento da beleza feminina com base em nossa constituição biológica seriam uma conspiração naturalista visando a solidificar um sistema de crenças que perpetuariam e legitimariam a dominação dos machos sobre as mulheres.
Abster-me-ei de tecer considerações sobre os vários equívocos nessa perspectiva de Wolf no âmbito da teorização sociológica. Aqui, meu foco será em sua crença, pregada na supracitada obra, de que a grande ênfase sobre a beleza feminina que se verifica em nossas sociedades, inclusive em nossas artes (como na literatura, na escultura ou no cinema, por exemplo) não é senão um constructo social das sociedades ocidentais. Logo, conclui peremptoriamente, outras culturas distintas decerto apresentam uma ênfase maior na beleza masculina ou mesmo um equilíbrio na descrição dos aspectos fisicamente atrativos em homens e mulheres.
Visto que há uma considerável variabilidade nas diferenças de fertilidade nas fêmeas humanas, especialmente no tocante ao quesito idade, concluem os psicólogos evolucionistas que uma ênfase maior nos traços joviais da beleza feminina, bem como naqueles sutil ou explicitamente voluptuosos, deveriam não apenas se encontrar em outras culturas que não exclusivamente as ocidentais, como deveriam ser um universal ou quase universal humano.
Foi com esse intento que Gottschall e sua equipe resolveram analisar 90 coleções de antigos contos folclóricos de várias sociedades tribais ou pré-industriais, que dificilmente poderiam ser acusadas de terem sido produzidas sob influência dos valores ocidentais. Foram analisadas histórias de povos dos cinco continentes, bem como de diversas ilhas do pacífico. Os agrupamentos das coleções foram feitos com base em suas salientes afinidades geográfica, linguística e cultural. No fim, apesar da enorme distinção que alguns povos apresentavam nessas três categorias, o número de referências, em suas histórias, descrevendo a beleza feminina com adjetivos comumente usados na tradição ocidental (como, por exemplo, os positivos “linda”, “voluptuosa” e “estonteante”, bem como os usados em descrições depreciativas da beleza física, como “feia”, “monstruosa” ou “repulsiva”) foi inegavelmente maior que as descrições da beleza masculina em praticamente todas as culturas. De fato, a análise dessas fontes, que, aliás, são encontradas em todas as comunidades humanas conhecidas, sugerem que a probabilidade de um personagem ser descrito com adjetivos referentes à beleza física é seis vezes maior quando se trata de uma mulher.
Considerações finais
É óbvio que este texto não faz mais que discorrer um tanto superficialmente sobre um tema tão amplo, fascinante e controverso quanto a discussão dos mecanismos inatos que permitiram à nossa espécie não apenas produzir e apreciar as mais variadas formas de arte, como também fazem ouvir-se em cada obra concebida a voz da mimese, da representação do real como captada pelos sentidos evoluídos no Homo sapiens.
Ignorar, ou mesmo negar veementemente, que o Homo artisticus de hoje tem seus pés fincados no ambiente primitivo em que evoluíram nossos ancestrais é agarrar-se a uma crença tão ingênua quanto acreditar a Terra é plana ou que é o Sol que gira ao seu redor. Compreender os mecanismos psíquicos que subjazem à universalidade da ênfase maior na beleza feminina ou na preferência por representações realistas nas artes ou por padrões harmônicos na música não é compactuar com um complô universal visando à dominação de todos segundo os valores de uma cultura patriarcal ou elitista.
Aliás, é exatamente a impostura intelectual que sustenta o pós-modernismo, exigindo iniciação em sua verborrágica e inane literatura teórica para que se possa ser capaz de apreciar sua versão das artes — aqui, sim, num trabalho de condicionamento do que se deva procurar e valorar numa obra —, que se pode notar um projeto elitista de imposição do que seja “arte de verdade” contra os princípios naturais do gosto.
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