quinta-feira

Encolhida

Todo dia eu lembro do dia que tu morreu. E esse foi um dia de agressão, porque não era só você morto ali, como fato de que as pessoas morrem, era mais, era a morte escancarada o dia todo, esfregada na cara, agressiva. E minha maior luta foi ter te velado e enterrado. Luta afiada, porque os cortes não param de sangrar há anos, desde a nossa primeira morte, a do teu filho. Porque a tua morte foi só conseqüência da morte do teu filho, e foi passado para nós, os mais novos, essa herança genética de dor, de lama no peito, de perda, e o teu coração arrebentou, como algo que se liberta, porque dentro existia uma coisa maior e mais forte do que ele próprio. E eu guardo abafado e dolorido no peito esse nó que me fulmina, herdado primeiro do teu filho, agora de você, de toda a tua vida. Mas eu não me conformo com a morte, com as tuas mãos cruzadas sobre a barriga, e no teu semblante que tentaram disfarçar de sereno, mas que na verdade me parecia aterrorizante, porque eu sei que até na tua Hora, foi a morte do teu filho que tu viveu.
E eu choro, todos os dias, tua morte tem muita vida, é presente como uma sombra, nos meus sonhos de você não-vivo, nos meus sonhos das minhas coisas boas em um caixão. E agora que não existem mais os teus olhos azuis que eu via chorar, agora, a tua viúva pode contar para os que têm o teu sangue e a tua dor, o quanto você foi fraco, egoísta e medíocre durante a vida, e eu via na minha infância tanta beleza sofrida por detrás do teu azul limpo, e você era uma espécie de herói. Deixou de ser.
E eu queria ouvir a tua voz só mais uma vez, eu queria ouvir a tua voz me dizer o que eu faço com essa coisa que herdei de você, eu queria te ouvir e te contar, já que dessa lama ninguém mais quer saber.

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