terça-feira

Revista Cult - Junho.

Simplesmente perfeito.


"Uma análise do novo efeito Quero ser John Malkovich

Por Mark Dery

Por que blog? Primeiro problema: a palavra em si perde somente para "org" na sua estupidez mortificante. Blog soa como um híbrido infeliz de blob e flog - uma fusão para algum novo fetiche viscoso que seria melhor não descrever. É, eu sei que quer dizer "diário na Internet"/ weblog, mas, afinal, quem é que chama isso de "diário de bordo", a não ser homens adultos usando orelhas pontudas (tipo Mr. Spock) e que começam cada registro em seus diários com datas estelares?
Segundo, há sempre o medo angustiante de que qualquer um que tenha um blog esteja fadado a se tornar um daqueles "Alpha Nerds"1, que deram a esse meio de comunicação uma péssima reputação - você sabe, aqueles auto-intitulados "Mestres de Seus Próprios Domínios"2, cujas prosas maçantes, senso cósmico de sua própria importância e uma estranha recusa em usar contrações (gramaticais), fazem eles parecerem a prole geneticamente engendrada de Ted Koppel3 e Charlton Heston em Os Dez Mandamentos. E daí se eles conseguem mais acessos que Deus? Você gostaria de ficar preso na classe econômica de um vôo transatlântico perto de um desses "Mestres do Universo", cheio de estilo próprio, e com opinião formada sobre tudo?
Pois é, eu sei que o blog é nossa última e grande esperança4 para um jornalismo cidadão - para nos apoderarmos do modo de produção5 e falarmos a verdade aos poderosos sem trocar de roupa por dias a fio. Mas, santo Deus!, por que a maioria dos porta-estandartes da revolução tem que ser tão repulsivamente obcecada por tecnologia? Por que a maioria dos retóricos do poder, que se tornaram os garotos brancos furiosos dos blogs, parecem como se, há poucos anos apenas, estivessem matriculados no Instituto de Linguagem Klingon6, felizes da vida? Será que é mera coincidência que o título de um dos longos trabalhos publicados que deram origem aos blogs, escrito por John Hiler - Jornalismo Cibernético: Nós Somos os Blogs. O Jornalismo será Assimilado - seja uma alusão à Jornada nas Estrelas: A Próxima Geração?
Então, por que blog? Com certeza, não é porque o blog esteja fadado a engolir toda a grande mídia, e regurgitar a gravata borboleta de George Will7. A melhor coisa sobre o blog não é ser um "jornalismo cidadão"; é que não é jornalismo. É claro que o blog, enquanto jornalismo de base pode servir como corretivo aos pontos nebulosos ideológicos e à orientação comercial do monopólio da mídia corporativa, verificando a veracidade dos conteúdos veiculados8, e restaurando algum traço de equilíbrio daquilo que é repassado como informação hoje em dia.
Mas os "blogueiros" que realmente desejam remediar os males que afligem o monopólio da mídia corporativa deveriam pegar algumas dicas no site
Back-to-Iraq.com, de Chris Allbritton, e arrastar seu corpos precoces, cheios de tubos e fios, para fora de seus casulos mecânicos tipo Matrix9, e fazer uma maldita reportagem, em vez de comentar o comentário10 sobre o que foi publicado no site Instapundit sobre a reportagem no Daily Kos sobre a reportagem no Little Green Footballs sobre o último ato de alta traição da Vasta Conspiração da Mídia de Esquerda11. É a síndrome da tartaruga Yertle12: supostos especialistas empilhados sobre supostos especialistas, até o chão e, embaixo da pilha, o humilde repórter que desencadeou todo o frenesi da intertextualidade: o repórter que ousou se aventurar para fora da câmara de vácuo da mídia para coletar algumas amostras de Fato Real Reportado.
Quem pode contrariar o apelo de Dan Gillmor por um jornalismo mais democrático, uma alternativa descentralizada à consolidação maciça do horror murdochiano, que passa por informação midiática nos Estados Unidos? O problema é que "blogar" demais - pelo menos os blog-nerds de quem a mídia parece estar falando, quando fala de "blogueiros" - fica muito parecido com a turma que já governa o universo midiático. Com poucas e honrosas exceções, o suposto analista político e os "blogueiros" midiáticos com os maiores acessos representam praticamente farinha do mesmo saco: o mesmo cabelo com gel e olhos vivazes, fazendo carreira atiçando fogo em fantoches de palha em Scarborough Country e Sean Hannity; as mesmas figuras que se atacam e se esbofeteiam até ficarem estrábicas nos programas Firing Line e do canal Fox News; os mesmos "analistas das notícias" das grandes redes midiáticas - "Mestres do Universo" sentados em suas poltronas13 - que se acham qualificados para discorrer sobre qualquer assunto, por mais esotérico que seja.
Será esta a revolução de baixo para cima e de muitos para muitos que nos foi prometida? Outra ditadura do "comentarismo"? Não para mim, obrigado! Você pode empilhar os seus Instapundits14, como lotes de madeira, que mesmo assim ainda não terão a autoridade empírica ou dignidade moral, sem mencionar as pérolas literárias da velha e durona escola de um único repórter-blogueiro como Chris Allbritton. E Allbritton não está só. Pense na carta contundente, direto do âmago do repórter de guerra Kevin Sites15, para o batalhão de fuzileiros junto ao qual foi destacado como jornalista independente - e num dos soldados que ele filmou executando um iraquiano gravemente ferido, e aparentemente desarmado, com um tiro na cabeça.
Não é que o blog tenha que trazer de volta os relatos terríveis das zonas de batalha, a fim de poder se justificar. Alguns dos melhores blogs oferecem um Mundo Bizarro16 como alternativa à grande mídia. O seu conteúdo não é determinado por formadores de opinião, que dizem o que você deve saber, ou por editores que querem vender sua atenção para anunciantes que querem uma fatia do seu nicho demográfico. Em contrapartida, eles dizem o que nem você mesmo sabia que deveria saber. Alguns dos meus blogs favoritos reclamam para si a promessa radical inerente à noção de um diário online: eles deixam o passante casual dar uma espiada nos pensamentos mais recônditos de um estranho, enxergando o mundo através dos olhos de outra mente. É o que eu chamo de efeito Quero Ser John Malkovich17.
Alguns dos blogs mais consistentemente esclarecedores e de entretenimento são produtos inescrutáveis de mentes borderliners. Blogs como
bOING bOING, The Obscure Store, Kottke.org, e Die Puny Humans são uma miscelânea de tudo, repletos de tudo que chame a atenção da imaginação de seus curadores excêntricos. Ler esses blogs é como fazer uma subscrição para o fluxo de pensamento de alguém; é a coisa mais próxima que temos da telepatia. O que tem a ver entre si um par de matemáticos usando 25511 pontos de crochê para representar a equação de Lorenz, uma lista de "palavras que não estão no dicionário, mas que deveriam estar" (exemplo: " sarchasm (subst.): O abismo entre o autor de criações sarcásticas e a pessoa que não o entende"), e fotos de "arquitetura de salada chinesa"? Nada, a não ser pelo fato de que chamaram a atenção de Jason Kottke, do site Kottke.org, mesmo que por pouco tempo.
Já imaginou o que seriam as notícias matinais se fossem editadas por Groucho Marx e Charles Fort18? Não é preciso mais imaginar: enquanto estou escrevendo, o grupo do blog bOING bOING publica uma nota informando que sacerdotes maias decidiram exorcizar os maus fluídos deixados pelo presidente Bush, quando em visita ao sítio sagrado de Kakchiquel, na Guatemala; uma foto de um relógio de bolso russo lindíssimo, todo feito em madeira, em l900; e outra foto de um lustre feito de ursinhos de goma, "tão delicioso quanto translúcido"!
Com tanta glicose para o cérebro em nossas dietas da informação, será que a contínua insurgência no Iraque e os horrores caligulianos19 da administração imperial de Bush nos seus últimos dias ainda têm alguma importância? Com certeza. Foi por isso que Deus criou The Nation, The Guardian e (insira aqui a sua fonte confiável de informações radicais). Mas eu quero viver num mundo em que a mídia que luta pelo apelo de massa, e veste sua responsabilidade social com a mesma consciência da importância que Darth Vader atribui ao uso de sua capa, tenha como contraponto os microcanais, cuja programação reflita os caprichos individuais - os gostos e interesses de uma única mente inteligente que não dá a mínima para a fatia de mercado ou para a aclamação popular (ou mesmo pela aclamação crítica...).
É claro que nem todas as idéias merecem sequer um minuto de nosso precioso tempo, aquilo que os marqueteiros gostam de chamar de "a economia da atenção". Mesmo assim, esses blogs-fluxos-de-dados-da-consciência que realmente merecem nossa atenção oferecem uma alternativa estimulante à grande mídia voltada para o anunciante e testada pelo mercado. Eles conseguem ser totalmente idiossincráticos e, ao mesmo tempo, reconfortantemente familiares - são monólogos íntimos que o resto do mundo pode ler. Considere um blog como o de Kottke. As pessoas não o lêem porque estão interessadas nos temas que ele cobre, por mais fascinantes que sejam, como freqüentemente o são, e, sim, antes de tudo, porque querem estar na primeira fileira para assistir aos filmes projetados no interior do seu cérebro. Ler blogs como este é o equivalente intelectual das experiências de Beaumont em fisiologia gástrica, ao observar por um orifício a digestão no estômago de um soldado ferido.
É genial!

Mark Dery é crítico cultural e autor de The Pyrotechnic Insanitarium: American Culture on the Brink. Leciona crítica dos meios de comunicação e jornalismo literário na Universidade de Nova York "


NOTAS

1. Trocadilho com "Macho Alfa", líder do bando.
2. Referência ao seriado Seinfeld.
3. Jornalista americano, ex-apresentador do noticiário Nightline.
4. Alusão jocosa a um discurso de Lincoln.
5. Alusão jocosa a Marx.
6. Referência aos fãs obcecados de Jornada nas Estrelas.
7. Analista de mídia, popular e conservador, nos Estados Unidos.
8. "Fact Checking Their Asses": grito de guerra dos blogueiros, na sua guerra contra a hegemonia da grande mídia, que julgam não ter validade histórica, até o advento dos blogs que vieram para conferir os fatos.
9. No filme de ficção científica Matrix, o que a maioria dos seres humanos pensa ser realidade é, na verdade, uma ilusão fabricada pelo computador. Na verdade, a maioria dos humanos está adormecida em casulos mecânicos, com tubos ligados ao corpo que permitem, aos seus senhores-máquinas, sugar sua energia para alimentar o mundo das máquinas.
10. Expressão usada para enfatizar o fato de se fazer comentários sobre o que já foi comentado.
11. Alusão/trocadilho à famosa evocação de Hillary Clinton sobre a "vasta conspiração da direita".
12. Referência ao famoso livro infantil americano, A Tartaruga Yertle, escrita pelo Dr. Seuss.
13. Referência aos super-heróis de desenho animado e brinquedos, Mestres do Universo.
14. Blogueiro popular e conservador. Ver Instapundit.com.
15. Ver carta publicada em www.hotzone.yahoo.com/b/hotzone/blogs995 .
16. Referência ao mundo oposto nos gibis do Super-homem.
17. Referência ao filme no qual os personagens descobrem que eles podem ver o mundo através dos olhos de John Malkovich, no interior do seu cérebro, literalmente.
18. Inventor da idéia do fenômeno "inexplicavelmente estranho".
19. Referência ao imperador romano Calígula, conhecido por sua depravação e sadismo.

3 comentários:

  1. Prefiro ler no papel., quando levar a revista para casa hoje de noite, hehehehe.

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  2. Ok, não resisti. O texto é fodônico e concordo completamente. Blog não é jornalismo, xuxu.

    Blog é blog e ponto.

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  3. Quanto a revista, eu paguei - é minha.-> ponto de ponto final mesmo! rs

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